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Crédito imagem: Editora Seguinte |
"Capitulo Um
Serina
Serina Tessaro sentia a
costela quebrada arder a cada puxada de ar. O corte não cicatrizado no braço queimava, o ferimento de bala no ombro doía e os hematomas
dos socos do comandante
Ricci gritavam. Na verdade, era difícil encontrar um pedaço de seu corpo não atormentado por dores intensas.
Mas as lembranças do corpo sem vida de Jacana, dos olhos ce‑ gos de Oráculo e das fileiras
de mulheres corajosas que tinham morrido eram uma agonia maior.
Ela devia saber
que, em Monte
Ruína, sobrevivência significa‑ va dor.
Desde o momento em que chegara à ilha, condenada
por ler — crime da irmã, não dela —, Serina não parou de sentir dor. A dor das algemas, dos soluços das outras prisioneiras, de ser despida e inspecio‑ nada pelo comandante Ricci. E a agonia das lutas em si, de ver mu‑
lheres matarem umas às outras
por comida. De ver Petrel,
sua amiga, morrer. Quando chegara sua hora de lutar,
Serina descobrira que não conseguia. Preferira se render a matar Anika, do hotel Tormento.
Também havia pagado por aquela
decisão com dor: banimento, ata‑ ques e a vingança do comandante Ricci.
Ele a capturara e tinha obrigado a subir no palco e escolher
uma mulher para enfrentar.
Quando Serina se recusara a lutar contra
uma mulher e desafia‑
ra o
próprio Ricci a ser seu adversário, imaginava
que morreria.
Não tinha esperado uma rebelião.
Mas Retalho e o bando
do hotel Tormento tinham atacado os guardas; Oráculo e Âmbar haviam matado o comandante Ricci; e Serina, diferente de muitas outras,
havia sobrevivido até a manhã seguinte.
Cada respiração dolorosa
era um presente de Oráculo,
Retalho e todas as mulheres que haviam escolhido lutar contra os guardas
em vez de entre si. Enquanto esfregava o sangue delas do anfiteatro, Serina jurou a si mesma que não deixaria que aquelas mortes fossem em vão e que
não decepcionaria as sobreviventes.
A aurora dançava
pela ilha como
uma graça em um vestido dourado, iluminando cada folha e
rocha vulcânica dura com filigranas de luz enquanto ela e as outras tentavam
apagar a carnificina da noite anterior. Todos
os corpos já tinham sido
levados as mulheres haviam sido entregues ao brilho vermelho do vulcão e os
guardas às profundezas frias do mar. Logo,
todos os rastros de sangue sumiriam também.
Engolindo um gemido,
Serina levantou devagar. O sol aquecia seu rosto. Penhasco passou do
seu lado carregando um balde de água
ensanguentada. Sua testa larga e queimada de sol estava franzida, em uma reflexão
ou apenas cansaço. A mulher mais velha
era encarregada das novatas do bando da caverna e tinha sido
uma das primeiras que Serina conhecera
na ilha, junto com Oráculo.
Serina perdeu o fôlego. Lembrava perfeitamente daquela noite e
de como estava
aterrorizada antes mesmo
de ver uma luta e ficar
sabendo que as mulheres deveriam se matar. Tinha se sentido sozinha e com saudades da irmã.
Aquilo não havia
mudado. A separação de Nomi era
uma dor mais aguda
e mais profunda que as costelas quebradas e o ferimento de bala.
Penhasco levou
o balde até a beira do anfiteatro de pedra rachada, onde a grama amarelada e resistente de Monte Ruína
balançava na brisa.
Outra mulher, curvada
e exausta do trabalho da noite, coletava os pedaços de tecido que elas tinham
usado para lavar as
pedras. Serina enxugou
o suor da testa com as costas
da mão.
Nomi.
Ela precisava de um plano. A irmã estava presa em
Bellaqua como uma das
três graças do herdeiro. Pouco
tempo antes, Serina queria exatamente o que Nomi possuía
agora — uma vida de luxo
e beleza nos braços do homem mais
poderoso de Viridia. Mas, para Nomi, aquela
vida era uma prisão tão real quanto
Monte Ruína, e Serina estava determinada a libertá‑la.
Anika e Val apareceram no topo do anfiteatro empurrando um carrinho enferrujado cheio de sacos de juta as rações
que o comandante Ricci tinha escondido. Enquanto o levavam na direção
de Serina, uma fila de mulheres se formou atrás
delas, espalhando‑se pela rocha
vulcânica que cobria
uma seção dos bancos de pedra.
Outras vieram da base do teatro, onde estavam descansando contra a parede da torre
de vigia. No total, ela estimava
que cerca de cento e cinquenta mulheres tinham sobrevivido, talvez uma dúzia a mais ou
menos. A maioria encarava os sacos de juta com um olhar faminto.
Val
e Anika pararam no fundo do anfiteatro.
O cabelo desgrenhado de Val se curvava em todas as direções
ao redor de seu rosto
bronzeado. Sua mandíbula estava machucada e seu pescoço, sujo de terra. Serina sorriu para ele, emocionada.
Tivera a chance de escapar
e deixá‑la para trás, mas havia ficado
e ajudado. Ele notou sua expressão
e relaxou, abrindo
um sorriso.
—
Como quer que
a gente distribua as rações? — Anika perguntou. Longos raios do sol matinal douravam sua pele
morena. Tinha um olho inchado e tufos de cabelo escapavam
de suas tranças apertadas, mas ela demonstrava a mesma confiança e resistência de quando chegara à ilha.
Serina tinha ouvido um
boato de que as mulheres
do hotel Tormento haviam tentado apelidá‑la de Sombra, mas
Anika se recusava a reconhecer qualquer nome exceto
o seu, alegando que era a única coisa que a mãe lhe dera que ninguém podia tirar dela.
Serina havia se rendido a Anika em vez de matá‑la quando foram postas para lutar.
Aquele fora o começo de tudo, tornando Serina um alvo. Se o comandante Ricci não a tivesse obrigado a lutar, talvez elas nunca tivessem
se rebelado.
— Vai ser mais fácil dividir a comida de modo justo se estivermos todas no mesmo lugar
— Serina disse.
— Acho que cabemos
no hotel Tormento, não? — Elas já tinham
organizado uma enfermaria improvisada em um dos antigos
salões de baile no térreo.
Serina ficaria contente
se nunca mais
tivesse que dormir
no tubo de lava que seu bando chamava
de lar. Oráculo
não parecia se importar com os ventos sulfúricos da
caldeira ou com a proximidade da parte
ativa do vulcão,
mas a rocha sempre parecera
se fechar sobre
Serina, e ela nunca conseguira esquecer que aquele
espaço tinha sido aberto pela lava… a qual poderia
se derramar sobre elas a qualquer momento.
Anika olhou de relance para as outras
mulheres do seu bando.
Nas horas
que se seguiram à luta,
na qual sua líder Retalho
fora morta, Anika tinha
assumido o comando,
gritando ordens enquanto ajudava Val a levar os sete guardas
sobreviventes ao complexo.
Ela
se virou para Serina e assentiu.
— Temos espaço.
— Temos espaço.
—
Como podemos confiar
no bando do hotel Tormento? — alguém perguntou. — Elas vão nos matar
enquanto dormimos!
Serina encontrou a fonte da voz na multidão — uma mulher com pouco mais de vinte anos,
cabelo platinado e o rosto
tenso e corado.
— Qual é o seu nome? — Ela contraiu
os músculos da perna
para não cambalear. Estava prestes a cair de cansaço.
— Raposa — a mulher
cuspiu. — Sou
a líder do bando da floresta agora que Veneno morreu.
— Ela deu um olhar
furioso para
Anika. — Graças a ela.
—
Veneno matou muitas de nós — uma voz amarga
retrucou. O coro foi crescendo,
insistente e furioso
como um ninho de vespas.
—
Ei! — Serina gritou,
erguendo as mãos para pedir
silêncio.
— O
comandante nos forçou a lutar, lembram? Anika não matou Veneno porque quis. Nenhuma de nós matou por escolha. Não somos inimigas. Só vamos sobreviver se trabalharmos juntas,
como ontem.
— Acha mesmo que vamos sobreviver? — Garra, uma mulher baixa e atarracada do bando da caverna, gargalhou. — Não temos comida e nenhum
jeito de arranjar
mais. Vamos todas morre aqui. Serina cruzou os braços, ignorando
a dor aguda que irradiou do seu peito.
— Não vamos morrer. O próximo barco
de prisioneiras chega daqui a uma semana,
talvez duas, e vai trazer
rações. Podemos subjugar os guardas e pegar a comida, então
usar o barco para escapar…
Sua voz morreu. Aonde
elas iriam? E como encontraria Nomi? Anika inclinou a cabeça.
—
Os guardas não têm barcos?
Por que não os pegamos?
Podemos sair
já desta rocha
e voltar para
nossa família.
— Foi minha família que me mandou
pra cá! — alguém gritou. Val ergueu a voz sobre a algazarra crescente.
— Não há barcos. Esta
ilha também é uma punição
para os guardas, inclusive para o comandante Ricci.
Todos decepcionamos o superior
de alguma maneira.
Éramos cruéis demais,
ou cruéis de menos. Ele enviava os soldados fracassados pra cá. Não temos barcos nem para uma
evacuação de emergência. Nosso único contato com o mundo lá fora é por meio
dos homens que
chegam com as prisioneiras.
Val
olhou para Serina com uma pergunta implícita.
Ela sabia o que ele queria. Val tinha um barco que mantivera
em segredo por anos, no qual os dois haviam planejado escapar, rumando para Bellaqua
para resgatar Nomi.
A um sinal de Serina, ele ficaria calado. O barco continuaria sendo um segredo
e a melhor chance que tinha de reencontrar a irmã.
No dia anterior, ela estivera pronta
para partir, mas descobrira
que não podia abandonar Jacana,
que a ajudara a procurar um jeito de sair da ilha.
Agora Jacana estava
morta. Serina não conseguira
salvá‑la. Não havia
nada que a prendesse ali
e a impedisse de pegar o barco de Val e salvar a irmã.
Nada exceto as mulheres de Monte Ruína.
As mortas, como Jacana e Oráculo, por quem ela jurara vingança, e as vivas,
que prometera tentar salvar.
Serina não podia
escapulir num barco
e abandoná‑las, nem por
Nomi. Daria
um jeito de tirar a irmã das
garras do herdeiro e do olhar gélido
e vigilante do superior — mas não daquele jeito.
— Existe um
barco na ilha — ela disse,
ainda olhando para
Val. Ele acenou de leve, mas seu cenho se franziu
de tristeza. — Mas é pequeno e só aguenta
duas ou três
pessoas. Mesmo assim, pode
ser útil.
— E como você sabe disso? — Anika
perguntou, estreitando os olhos.
— É
meu — explicou Val. — Escondi onde
nenhum guarda e nenhuma prisioneira pudesse
encontrar. Vim para a ilha para resgatar minha mãe, mas… — A voz dele falhou.
— Ela já tinha morrido
quando cheguei.
Anika
relaxou um pouco.
Val foi até o lado
dela no palco,
virou‑se para encarar
as mulheres no anfiteatro e pigarreou.
—
Existe um país chamado Azura
a leste de Viridia, do outro
lado do mar Galáteo — ele disse.
— Meu pai era mercador
e o visitou uma vez. Ele
me contou que em Azura
as mulheres trabalham, têm posses e cuidam do próprio dinheiro. Podem até ler. Não é tão longe,
mas nosso lado
da fronteira é fechado, exceto para delegações convidadas pelo superior. Só que o
lado deles da fronteira permite livre passagem.
Val tinha contado
a Serina sobre
aquela viagem, que havia inspirado o pai dele
a ensinar a esposa a ler. Ela,
por sua vez,
passara a ensinar garotas
que iam à casa deles
em segredo. Aquele
fora o motivo pelo
qual o pai
de Val tinha
sido morto e a mãe,
mandada para Monte Ruína. Explicava muito sobre o filho
deles também.
— E
você acha que devemos ir pra lá? — Raposa perguntou, afastando o cabelo platinado da testa franzida. — Por que
eles iam nos receber?
Val deu de
ombros.
—
Não há como ter certeza.
Mas parece mais seguro que ficar
aqui ou voltar
para Viridia.
E então posso partir, Serina pensou. Quando as mulheres estiverem a caminho
de Azura e não precisarem mais de mim, vou pegar o barco de
Val e salvar minha irmã.
Mas e se Nomi não quisesse ser salva? Serina
mordeu o lábio. Era possível que ela tivesse se acostumado à vida no palazzo e agora achasse
seu papel de graça menos
repugnante do que
esperava. Mas Serina duvidava. Nomi sempre falara
que ser graça
não fazia diferença alguma
quando você não poderia escolher
não ser uma.
E
estava certa.
Por mais sofisticada que fosse a vida de Nomi, Serina
ia lhe dar uma escolha. Era tudo
o que a irmã sempre
quisera, a chance
de escolher seu próprio destino.
E,
ainda que morresse tentando, Serina realizaria seu desejo.
— Então tomamos o barco
da prisão — Serina disse,
erguendo a voz acima
dos murmúrios céticos
das mulheres. — E vamos
para Azura
começar uma vida nova.
Os ombros de Anika caíram,
mas Serina não entendeu sua decepção. Seu
olhar foi até
as mulheres que
enchiam o anfiteatro, algumas sentadas em bancos de pedra, outras
em pé sobre a onda de
rocha vulcânica negra
que cobria metade
dos assentos.
Havia tantos rostos
macilentos, tantos ferimentos e olhos afundados. Fome e medo a encaravam.
Algumas daquelas mulheres estavam ali havia
anos e tinham presenciado inúmeras lutas e visto
inúmeras
colegas morrerem.
—
Vocês vêm lutando há muito tempo
— Serina disse, com a voz falhando. — Fica difícil acreditar
que acabou ou que as coisas
podem melhorar. Mas
é verdade. Pelos próximos dez dias,
essa ilha é nossa.
Conquistamos a liberdade, assim como nosso
nome e nossa vida. Não importa o que aconteça
quando chegarmos em Azura,
isso vai se manter.
Não somos mais prisioneiras.
As mulheres relaxaram
um pouco. Serina vislumbrou sorrisos esperançosos em meio à exaustão. Até as líderes
dos outros bandos pareceram se animar. Os braços de aço de Graveto pendiam
ao lado do corpo.
No contingente dos
penhascos do Sul,
um sorriso fino cruzou o rosto cheio de cicatrizes da líder Chama. Mas Anika não era a única
que ainda parecia
incomodada." Fonte: Companhia das letras